Problema histórico da rede municipal de educação de Fortaleza, o número insuficiente de vagas em creches tem afetado uma parcela sensível da população: as crianças em situação de pobreza. Em cada dez delas, oito estão fora das salas de aula, parte delas por falta de vagas.
Na capital cearense, 9,3 mil crianças de 0 a 3 anos estão em situação de pobreza, ou seja, têm famílias com renda mensal per capita igual ou inferior a R$ 218. Quase 85% delas, o equivalente a 7.845 crianças, não frequentam creches de jeito nenhum, quase 20% delas por não encontrar vagas.
O panorama é traçado pelo Índice Necessidade de Creches (INC), desenvolvido pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV) para mapear a demanda potencial de atendimento de creches no Brasil e nas grandes capitais.
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Somados com as crianças em situação de vulnerabilidade socioeconômica, mais de 41 mil meninos e meninas de até 3 anos de Fortaleza formam os grupos prioritários para acesso à creche e compõem o INC.
Deles, apenas cerca de 15,7 mil frequentam uma instituição de educação infantil. Isso significa que 25.740 crianças em idade de creche na capital cearense e que deveriam ser priorizadas não estão matriculadas, de acordo com o levantamento da FMCSV.
Para chegar ao número de meninos e meninas que devem ter prioridade para matrícula, o INC considera quatro indicadores:
- Pobreza: proporção de crianças de 0 a 3 anos com mães/cuidadores em famílias com renda mensal per capita igual ou inferior a R$ 218;
- Monoparentalidade: proporção de crianças de 0 a 3 anos em famílias que não estão em situação de pobreza e são monoparentais, ou seja, com apenas um adulto responsável pelo lar;
- Mães economicamente ativas: proporção de crianças de 0 a 3 anos em famílias que não estão em situação de pobreza, não são monoparentais e têm ou poderiam ter mãe/cuidador economicamente ativo se houvesse creche;
- Deficiência: proporção de crianças que têm dificuldade em exercer ao menos um dos domínios funcionais, que não estão em situação de pobreza, não pertencem a famílias monoparentais e cuja mãe/cuidador não é e nem seria economicamente ativo, mesmo se tivesse acesso à creche.
Acessar as salas de aula desde cedo, por meio da creche, que é a primeira etapa da educação básica, é um investimento com resultados em curto, médio e longo prazos, como avalia Karina Fasson, gerente de Políticas Públicas da FMCSV.
“Muitos estudos nacionais e internacionais mostram que o acesso a uma educação infantil de qualidade vai impactar a permanência e a progressão escolar do indivíduo ao longo da vida, e isso também vai ter impacto em outros segmentos, como empregabilidade, redução de vulnerabilidade social e até saúde”, lista.
Além de repercutir na formação, ter vaga em creche garantida influencia questões sociais, econômicas e até de igualdade de gênero.
“Historicamente, a creche no Brasil surge a partir dos movimentos de mulheres, para que elas pudessem se manter ou acessar o mercado de trabalho. Então, a creche tem um papel importante nesse sentido”, contextualiza Karina.
Assim, a dificuldade de Fortaleza e de outras capitais brasileiras de prestar atendimento integral de creche a crianças em vulnerabilidade socioeconômica se ergue como um obstáculo para romper o ciclo da pobreza.
“Quando a gente vê esse cenário em que crianças e famílias em situação de pobreza não estão tendo acesso priorizado à creche, a gente está deixando de lado uma oportunidade de quebrar desigualdades sociais”, lamenta a especialista.
204 mil
crianças de 0 a 3 anos fazem parte dos grupos prioritários para acesso à creche em todo o Ceará – das quais 117.493 não estão matriculadas em nenhuma instituição.
Giovanna Calonni, assessora jurídica do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca Ceará), reconhece que “esses dados conversam bastante com a realidade encontrada no cotidiano” da atuação da instituição, que atende crianças e adolescentes que tiveram direitos violados.
A gestora destaca que o INC “elenca alguns marcadores sociais importantes, porque correlaciona o acesso à educação aos variados contextos em que se inserem as famílias de crianças beneficiárias da política, compreendendo que os direitos fundamentais se interrelacionam”.
Ela observa que a falta de vagas suficientes para garantir esses direitos gera “um alto índice de demanda reprimida”, inclusive “de um ano para o outro”, o que foi alvo de Ação Civil Pública ingressada pelo Cedeca contra a Prefeitura de Fortaleza em 2019.
Afinal, o que fazer?
A lei nº 14.851, de maio de 2024, torna obrigatória a criação de mecanismos de levantamento e de divulgação da demanda por vagas no atendimento à educação infantil de crianças de 0 a 3 anos de idade.
Giovanna considera o dispositivo indispensável, uma vez que “é necessário garantir que as famílias possam ter acesso à sua posição na fila de espera e possam consultar, sempre que precisarem, o andamento da sua solicitação de vaga”.
Karina Fasson, da FMCSV, opina que além da demanda manifesta, de crianças que buscam por uma vaga e não conseguem, os municípios precisam apurar o olhar para a demanda potencial: de famílias que sequer buscam, seja por não saberem do direito, seja por não acreditarem que podem conseguir.
“A partir desse diagnóstico completo deve-se planejar uma expansão. Como um primeiro passo, estabelecer critérios de priorização, enquanto não consegue atender todos, contemplando as crianças em situação de maior vulnerabilidade social”, frisa.
A expansão, lista a gerente da FMCSV, pode ser feita, entre outras estratégias, com:
- Construção de novas creches;
- Convênio com instituições sem fins lucrativos;
- Abertura de vagas em unidades já existentes, por meio de reformas estruturais.
Outro fator que deve ser considerado no planejamento, como observa Karina, são os dados demográficos das cidades, “o movimento de natalidade do município”.
De qualquer forma, ela frisa a necessidade de apoio das demais esferas de governo aos municípios. “Apesar de a responsabilidade prioritária do acesso à creche ser do município, é papel também do Estado e do Governo Federal apoiá-los nessa oferta de vagas. O caso do Ceará é um deles”, pontua.
O que diz a Prefeitura
Para matricular as crianças nas creches, os pais ou responsáveis devem inscrevê-las no Registro Único (RU) em qualquer período do ano letivo, como informou, em nota, a Secretaria Municipal de Educação (SME).
“Após o cadastramento dos alunos em idade de creche, o sistema municipal organiza a relação das crianças em situações de vulnerabilidade”, frisa a Pasta. Em Fortaleza, as diretrizes de matrícula já determinam critérios de prioridade, que envolvem:
- Aspectos como proteção social (criança de acolhimento institucional; filha de mãe adolescente em cumprimento de medida socioeducativa; órfã, em situação de rua, de tutela, de guarda, medida protetiva, migrante; entre outras);
- Criança com deficiência;
- Criança atendida por programas sociais / de transferência de renda, como Bolsa Família;
- Criança de família com renda per capita inferior a R$ 218; entre outros aspectos.
A SME reforça que “desde 2021, foram criadas 7.109 novas vagas para estudantes do berçário ao infantil III, anos que compõem a etapa creche na Rede Municipal de Ensino”, e inaugurados 34 novos Centros de Educação Infantil (CEIs).
“No total, foram investidos mais de R$ 119,6 milhões nestas obras. Além disso, há outros 10 CEIs em construção, ampliando o investimento. Outras 112 creches parceiras estão credenciadas à Rede Municipal de Ensino, oferecendo vagas para os estudantes”, completa a secretaria.
25,5 mil
crianças de seis meses a três anos de idade compõem a Rede Municipal de Ensino de Fortaleza, de acordo com a SME.
“A série histórica de matrículas mostra ainda que Fortaleza aumentou em 141% o número de estudantes de creche desde 2012, quando havia 10.593. É considerada a terceira maior rede do Brasil, quando se fala na etapa creche”, pontua a Pasta.
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